O jornalista Raul Juste Lores, em entrevista à Esquema Imóveis, fala sobre as contribuições de arquitetos da comunidade judaica na configuração das nossas cidades
Estudar o passado é uma forma de construir o futuro. Na história das nossas cidades, especialmente no caso de uma metrópole como São Paulo, estão pessoas que ajudaram a transformar a maneira como observamos e vivenciamos o espaço urbano. Por isso, convidamos Raul Juste Lores, jornalista e autor do livro São Paulo nas Alturas, para contar um pouco sobre a contribuição dos arquitetos judeus na configuração da paisagem arquitetônica brasileira.
Entre os precursores da arquitetura moderna no Brasil estão o ucraniano Gregori Warchavchik e o brasileiro Rino Levi, que foram os primeiros arquitetos a divulgarem os conceitos modernistas no país, conforme explica Lores. “Eles trouxeram a ideia de uma nova linguagem arquitetônica, mais simples e democrática, mais fácil e rápida de se construir, que levasse em conta os grandes dramas da urbanização acelerada do início do século XX – como ventilação, insolação, materiais, conforto térmico e acústico”, observa o jornalista. “Ambos foram pioneiros em militar pelo modernismo, assim como também foram os primeiros a colocar a ‘mão na massa’. Warchavchik fez a primeira casa moderna do país, projetada em 1927 e inaugurada em 1928, na Vila Mariana. Já Levi iniciou seu trabalho como arquiteto em 1929, ao retornar da Itália, onde estudou.”
De acordo com Lores, os dois arquitetos provocaram uma verdadeira explosão do modernismo em terras brasileiras. Warchavchik não apenas construiu sua própria residência, como projetou casas de aluguel para a família Klabin, de sua esposa. Além disso, foi convidado pelo arquiteto Lúcio Costa para dar aulas na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e posteriormente se tornou sócio de Costas – que, por conta dessa parceria, abandonou o estilo neocolonial e começou a fazer obras modernas. “Warchavchik também contratou Oscar Niemeyer como estagiário em seu escritório. Ou seja, ele teve uma dupla atuação: de divulgação e de prática na construção da arquitetura moderna brasileira”, salienta o jornalista. “Não foi fácil, especialmente porque São Paulo era uma cidade muito conservadora. Mesmo nos anos 1930 e 1940, os grandes prédios públicos paulistanos ainda eram neocoloniais, neogóticos, ou neo qualquer outro estilo passadista. São Paulo olhava para trás em busca de status, em vez de olhar para o presente e para o futuro.”
Arquitetos empreendedores
Warchavchik e Rino Levi não foram os únicos profissionais da comunidade judaica a terem forte atuação no cenário arquitetônico brasileiro, entre as décadas de 1920 e 1940. “Justamente pela crise econômica do período entre guerras e pela perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial, muitos arquitetos judeus europeus começaram a imigrar para o Brasil e encontraram um terreno muito fértil em São Paulo: uma economia em crescimento, em fase de industrialização, e uma burguesia que queria investir no mercado imobiliário para proteger suas economias da inflação”, aponta Lores.
O jornalista cita nomes importantes dessa época, como os poloneses Lucian Korngold, imigrante da Varsóvia, e Alfred Düntuch, da Cracóvia, assim como Bernardo Rzezak, Victor Reif e Israel Galman, além de outros arquitetos alemães e romenos que vieram para o Brasil e começaram a trabalhar em São Paulo. “Por conta da burocracia, esses profissionais passaram a atuar como construtores. Havia dois motivos para isso, na verdade. O primeiro, porque precisavam ganhar dinheiro, uma vez que vinham como imigrantes, a maioria sem poupanças ou economias, e apenas vender projetos arquitetônicos não pagava as contas. A construção civil era uma maneira de trabalhar muito mais e ser melhor remunerado.”
Outro motivo pelo qual os imigrantes não atuavam apenas na arquitetura era a demora na revalidação dos diplomas. “Muitos desses grandes arquitetos judeus levaram dez ou até mesmo doze anos para terem seus diplomas reconhecidos no Brasil”, comenta Lores. “Ao criarem suas próprias construtoras, eles conseguiram projetar o que sonhavam, exatamente como queriam, contratando engenheiros locais ou jovens profissionais para assinarem os projetos. Era uma maneira de driblar a burocracia. E isso fez com que produzissem muito, porque não eram só projetistas. Eles iam atrás de investidores ou financiadores e controlavam todas as fases do projeto, o que garantia uma qualidade excelente para as obras.”
A atuação dos arquitetos judeus na transformação das cidades brasileiras foi de extrema importância também no que diz respeito à ampliação das possibilidades de uso do espaço urbano. “A cidade europeia tinha uma configuração muito diferente da cidade americana do pós-guerra. Os bairros europeus eram multiuso e serviam para moradia, trabalho e entretenimento, tudo nas mesmas áreas. Havia uma valorização do pedestre, uma ideia de cidade compacta que os arquitetos modernos trouxeram para cá”, afirma Lores. “O Centro Comercial Bom Retiro, por exemplo, de Lucian Korngold, é quase como uma quadra europeia: um terreno privado, mas com pequenas ruas públicas no meio do empreendimento. Essa mistura de usos (lojas no térreo, sobrelojas, escritórios, restaurantes) faz com que até hoje o local seja muito vivo, ou seja, o desenho permitiu essa bela relação com a calçada.”
Outro exemplo de diálogo com o entorno pode ser visto no Conjunto Nacional, de David Libeskind, arquiteto judeu nascido no estado do Paraná. “Nesse projeto, ele criou o nosso equivalente (eu diria que até melhorado) do Rockefeller Center, famoso edifício comercial nova yorkino. O Conjunto Nacional ocupa um quarteirão inteiro e possui um dos urbanismos mais inteligentes da cidade. O arquiteto misturou escritórios e apartamentos de vários tamanhos, além de colocar no térreo, na altura da calçada, comércios que criam um fluxo e um público para ocupar o local de segunda a domingo, de manhã à noite”, destaca Lores. “Ele também projetou calçadas muito generosas: o interior do empreendimento e a calçada externa se confundem, até pelo mesmo piso. É um lugar totalmente aberto, que convida a atravessar o quarteirão pelo meio do conjunto. Outro aspecto brilhante foi ‘esconder’ a entrada e a saída de automóveis, posicionando-as nas ruas secundárias, de forma discreta. Os espaços nobres do edifício são as vitrines, para caminhar, ver e ser visto. É um projeto extraordinário de Libeskind, que foi executado pela construtora de Warchavchik, em uma colaboração de duas gerações muito diferentes de arquitetos judeus.”
Estilo internacional
Conforme explica Lores, esse movimento que trouxe conceitos inovadores para a arquitetura brasileira veio principalmente da Europa. “As vanguardas europeias se tornaram muito influentes e poderosas, justamente após a Primeira Guerra Mundial, porque se tratava de um continente devastado, cheio de problemas, com milhões de pessoas sem casa e um número até então inédito de mortes. Os europeus precisaram se reinventar, não apenas na arquitetura”, conta. “Esses arquitetos que vieram da Europa não eram somente judeus, mas católicos, protestantes, ateus… Naquela época, era necessário que as pessoas literalmente trouxessem as tendências e novidades para cá, já que não existia internet.”
Segundo o jornalista, o que ocorreu nesse período foi uma espécie de “polinização”, porque arquitetos e outros artistas foram espalhando as sementes da modernidade por outros países. “Nossa sorte foi que o Brazil estava aberto a esses imigrantes, para que eles trabalhassem aqui e pudessem buscar refúgio da situação em que se encontrava a Europa; tanto pela questão econômica, pois ser arquiteto lá significava estar desempregado, quanto – no caso dos judeus – para escapar da perseguição. Korngold e Düntuch, por exemplo, fugiram da Polônia quando começou a ocupação nazista.”
Essas influências europeias no resto do mundo fizeram com que o modernismo fosse chamado, especialmente nos países de língua inglesa, de international style (ou seja, estilo internacional). “A ideia era de que essa arquitetura pudesse ser professada no mundo inteiro. Um exemplo disso é que a famosa escola alemã Bauhaus tinha arquitetos judeus, protestantes, católicos… Eles acreditavam em coisas diferentes, mas a linguagem arquitetônica era a mesma. Era uma arquitetura criada em sua crença na tecnologia e na reconstrução de uma sociedade mais justa, por isso ela não fazia distinção de religião, nem buscava colocar elementos figurativos nos projetos. A ideia era justamente que a arquitetura fosse despida de adornos.”
Essa mistura de referências é uma característica muito presente na obra dos arquitetos judeus. Lores ressalta que, mesmo na arquitetura religiosa da comunidade judaica, não há um estilo predominante. “As sinagogas, ao contrário das mesquitas ou das catedrais pré-modernismo, sempre variaram demais na arquitetura. Por exemplo, algumas sinagogas paulistanas foram projetadas por arquitetos modernistas, como Henrique Mindlin. A questão é que, muitas vezes por segurança, elas apresentam pouca sensibilidade arquitetônica, ou seja, não se destacam pela boa arquitetura. Para ver sinagogas contemporâneas muito bonitas, é preciso ir para os Estados Unidos, Israel, Londres ou Paris”, diz o jornalista.
Por outro lado, as contribuições dos arquitetos judeus em prédios comerciais, principalmente na cidade de São Paulo, são inegavelmente valiosas. Entre os exemplos citados por Lores está o edifício CBI Esplanada, primeiro arranha-céu racionalista da capital paulista, projetado por Korngold. “Vale lembrar de Jacob Lerner e Benjamin Citron, incorporadores e engenheiros, que trabalharam muito com o casal de arquitetos Maria Bardelli e Ermanno Siffredi e construíram várias galerias pela cidade, como a Galeria do Rock e a Galeria Nova Barão. Esses investidores, engenheiros, crescidos no Bom Retiro, participaram de diversas colaborações com arquitetos judeus em prédios comerciais de São Paulo”, observa. O jornalista acrescenta que Warchavchik ajudou a projetar alguns dos principais clubes de São Paulo, incluindo a sede do Clube Paulistano e o salão de festas do Clube Pinheiros. Já o Clube Hebraica foi um projeto em que vários arquitetos da comunidade judaica trabalharam juntos.
Os desafios da arquitetura residencial
Entre as maiores influências dos arquitetos da comunidade judaica na paisagem urbana brasileira certamente estão os prédios residenciais. “Em Higienópolis, é importante mencionar o edifício Prudência, de Rino Levi, um projeto excepcional, assim como os edifícios Fabiula e Chopin, de Korngold. Eu citaria também o Diana e o Itacolomi, de Victor Reif, o Paquita e o Piauí 1 e 2, de Alfred Düntuch, que estão entre os mais incríveis prédios residenciais desse bairro. Vale ainda falar do edifício Anita, de Düntuch, na Rua Haddock Lobo, e, muito mais recente, o Queen Mary, de Jozef Engelberg e Pedro Mahler, na Rua Marquês de Paranaguá”, cita Lores.
O jornalista destaca também o trabalho de arquitetos como Isay Weinfeld e Márcio Kogan (que atuam fortemente no segmento residencial de alto padrão, em especial casas), os jovens José Basiches, Adriana Levisky e Juan Pablo Rosenberg, bem como João Kon (de uma geração posterior aos modernistas, mas anterior aos contemporâneos). Em termos de edifícios residenciais, os incorporadores e construtores judeus atuais já não são mais a vanguarda indiscutível, como foram no passado. A maioria faz obras genéricas, sem impacto algum na paisagem; outros fazem prédios que já nascem ultrapassados, o oposto do que Galman ou Düntuch faziam, já que os edifícios destes são modernos até hoje. “O que mudou nos dias de hoje, infelizmente, é que o grande legado dos arquitetos construtores judeus dos anos 1940, 1950 e 1960, que vieram das vanguardas europeias e criaram obras com altíssima qualidade arquitetônica, talvez já não seja a regra para as incorporadoras e construtoras atuais”, lamenta.
Lores aponta que um aspecto em comum entre os arquitetos modernistas judeus era sua vasta bagagem cultural. “Eles liam muito, queriam aprender o que estava acontecendo no mundo, buscavam referências. Talvez isso é o que mais falte no mercado imobiliário de hoje: repertório.” A respeito dessa questão, o jornalista comenta que, entre os anos 1990 e 2010, houve uma febre de construções neoclássicas em São Paulo, que envelheceram muito mal. “Os ‘descendentes’ daquele grupo de arquitetos vanguardistas provavelmente não verão suas obras publicadas, expostas e debatidas na Europa e nos Estados Unidos. As novas gerações precisam prestar atenção a essa responsabilidade que têm com a cidade. Se você constrói prédios sem se preocupar com o entorno, todos perdem. Ao contrário de outras artes, um prédio mal projetado permanece ali por décadas. Todos nós padecemos quando a arquitetura não é levada em conta”, conclui.