O professor e filósofo Emílio Terron fala sobre como podemos encarar os encontros como oportunidades de transformação
Nos dias de hoje, parar um pouco e pensar sobre a vida pode ser algo que poucas pessoas conseguem fazer. No entanto, é a partir das reflexões e dos questionamentos levantados pela humanidade que surgem as grandes ideias, ao longo da história. Fazer perguntas e despertar nas outras pessoas a vontade de descobrir novas possibilidades, fundamentadas pelas teorias de grandes pensadores, é o trabalho de Emílio Terron, professor, escritor e mestre em filosofia pela PUC.
Como tema do ano de 2021, a Esquema Imóveis definiu experiências. Por isso, em um bate-papo recente com a equipe da empresa, Emílio abordou um assunto crucial para qualquer profissional que lida diariamente com relações humanas: o poder dos encontros. De acordo com o filósofo, nosso segmento nos apresenta oportunidades extraordinárias de estabelecer uma rede de afetos, gerada justamente por bons encontros. “E o que é um bom encontro?”, questiona o filósofo. “É uma coisa rara. É quando nos deparamos com algo que transforma nossa vida.”
Para ilustrar esse pensamento, Emílio cita um trecho do filme O Céu Que Nos Protege / The Sheltering Sky (1990), dirigido por Bernardo Bertolucci, que fala sobre a diferença entre um turista e um viajante: “Um turista é alguém que pensa sobre voltar para casa no momento em que chega ao lugar. Enquanto um viajante pode nem sequer retornar.” De acordo com o filósofo, essa comparação diz muito sobre a maneira como encaramos os encontros em nossa vida. Afinal, podemos ser tanto como o turista, que viaja mais com o objetivo de tirar fotos, para mostrar aos outros que esteve em algum lugar, quanto como o viajante, que se confronta com esse outro mundo e tenta decifrá-lo.
O espaço das experiências
Segundo Emílio, a filosofia contemporânea tem se debruçado sobre o fato de que a vida está se tornando um espaço vazio de experiências. Para o filósofo, a experiência implica em uma transformação, em receber um ponto de vista diferente do nosso e, a partir dele, experimentar novas formas de viver. “Nos dias de hoje, é muito difícil estarmos diante dos outros de maneira porosa, desarmada, e nos abrirmos para aquilo que ainda não somos. O encontro interessante é aquele que vem mostrar o que a gente não é, aquilo que nem suspeitávamos que poderíamos ser”, afirma.
Falando sobre como lidamos com as experiências, Emílio conta uma história pela qual passou o filósofo Walter Benjamin, ao entrevistar soldados que estiveram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. “Quando você vai escutar alguém que foi para a guerra, nessa situação de vida ou morte, a suposição é de que essa pessoa tenha algo para contar. Mas Benjamin percebeu que essas pessoas não tinham nada a falar. Elas não conseguiam converter aquela vivência em uma experiência narrável.”
Isso quer dizer que, ainda na década de 1920, Benjamin anteviu um drama contemporâneo: uma sociedade que padece da impossibilidade de converter suas vivências em experiências, de dotar de sentido aquilo que se vive. “Muitos acreditam que o problema, hoje, da depressão e da melancolia, da falta de sentido, é nossa incapacidade de experimentar a vida, de ativar esse lado criança de se encantar com o mundo, de encontrar um frescor, de se manter em um ponto de curiosidade em relação a si mesmo e aos outros”, observa Emílio. “Neste tempo em que estamos vivendo, cujo maior sintoma é a perda do vínculo com a vida, talvez nos falte simplesmente restituir essa crença.”
Pensando os encontros
Uma das principais características da filosofia é abrir a possibilidade de um diálogo com outras perspectivas de encarar a vida. Nesse sentido, Emílio apresenta a trajetória de um filósofo holandês: Baruch Spinoza (também chamado de Espinosa ou Espinoza). “Ele nasceu em uma família judaica, no século XVII, em Amsterdã, e foi educado para ser rabino. Mas foi banido e perseguido radicalmente, porque suas ideias começaram a colocar em xeque os valores de sua comunidade. Ele começou a desafiar a cultura na qual estava inscrito”, conta.
Para sobreviver, Spinoza acabou se tornando polidor de lentes de microscópio e de luneta. “Nesse sentido, um filósofo, um artista ou um pensador não deixa de ser um polidor de lentes: ele ajuda os outros a enxergarem melhor a realidade”, comenta Emílio. Mas o que havia de tão revolucionário nas ideias desse filósofo holandês? “Ele foi quem melhor teceu a realidade, porque pensava a vida a partir de uma perspectiva da imanência. Imanência significa que não existe nada fora da vida. Não existe um outro mundo, para além do que a gente vive.”
Isso quer dizer que, segundo Spinoza, não precisaríamos seguir um modelo ou princípio para conduzir nossa vida. Cada um teria a possibilidade de criar seu próprio modelo, a partir de sua singularidade. “Quando olhamos para nossos grandes dramas, nossos sofrimentos, geralmente eles decorrem dessa comparação que a gente se coloca em relação aos outros. Na medida em que você se compara, inevitavelmente vai se haver com uma falta, uma culpa, uma dívida.”
Então, a proposta de Spinoza seria de que cada pessoa é capaz de criar sua vida a partir da potência que a constitui. “Não há nada que defina ou que dê a medida da sua vida. É a experiência dos encontros que vai lhe mostrar o que é interessante de se viver. Por isso ele é o filósofo da afirmação da vida, do sim à vida”, explica Emílio. Mas o que significa isso, na prática? “Tudo o que existe possui uma essência. E o que essa essência quer? Perseverar na existência. A vida não precisa ser reprimida ou recalcada. O que nos cabe é entender o que se passa e deixar florescer.”
Conforme ressalta Emílio, a inovação da perspectiva spinozista, para sua época, foi afirmar que a vida é absolutamente positiva. “Já que não há transcendência e que tudo é pura imanência, ele vem trazer uma boa nova: de que a partir de uma prática de amor, a partir da maneira como se encontra com o outro, você arranca a eternidade em vida. E a eternidade, para Spinoza, não é a imortalidade da alma, mas uma intensidade que se passa no aqui e agora. É um afeto, uma maneira de se sentir participando dessa construção eterna da vida… ainda que ela seja finita. Ainda que se acabe, algo em nós participa desse jogo eterno”, diz o filósofo. Para Emílio, essa é uma tarefa que levamos até o final da nossa existência, na medida em que vamos nos lapidando para nos aproximarmos cada vez mais desse estado de eternidade.
Emílio destaca ainda que vivemos em um verdadeiro caldeirão de afetos. É justamente a tensão entre esses afetos que controla nossa existência. “O ciúme, por exemplo, é a iminência de perder aquilo que lhe traz alegria. Às vezes você vai para a terapia tentar entender isso, leva anos e não consegue resolver, fica patinando em torno daquele drama. O que Spinoza fala é que você só pode ultrapassar um afeto através de outro contrário e mais forte”, salienta. Isso acontece não só pelo entendimento racional, em que você apreende a verdade daquele fato, mas pela percepção de que o “aqui e agora” é muito maior do que aquela tristeza. Desse modo, o pensamento pode se converter no mais potente dos afetos.
Por isso, Emílio vê Spinoza como o pensador da alegria. “Na história da filosofia, muitos cultuaram a tristeza. O pensamento espinozista trouxe a ideia de que a gente só vai entender melhor a vida e se tornar um sábio através dos afetos de alegria. Ou seja, a felicidade de alguém depende da qualidade do ser ao qual ele se liga por amor. Se você se liga ao que é provisório, baixo ou passageiro, vai ter uma felicidade passageira. Tudo depende do que a gente deseja.”
Imaginação, razão e intuição
De acordo com Spinoza, o ser humano teria a possibilidade de experimentar três estados de existência: imaginação, razão e intuição. Quando vivemos na imaginação, somos incapazes de apreender a causa do que nos acontece. “Vivemos apenas no efeito, sem compreender o que nos leva a sofrer ou nos alegrar. Ficamos reféns dos encontros, impedidos de nos apoderarmos da nossa vida. Quem está preso à imaginação está em uma posição de escravidão”, salienta Emílio.
Mas o que nos prende à imaginação? A primeira coisa é a ilusão do bem e do mal. “Será que existe algo na vida que, em si, seja bom ou mau?”, questiona Emílio. “O mal também foi algo extremamente pensado na filosofia, desde a época de Sócrates. Para o filósofo grego, o mal era um desvio do bem. Quando somos ignorantes, caímos no mal, então ele não existe como substância.”
Outros pensadores defenderam que o ser humano é essencialmente mau e egoísta. Há também os que afirmaram que as pessoas nascem boas, mas são corrompidas pelo mundo. No caso de Spinoza, ele acreditava que não existe nada bom ou mau em sua essência, já que tudo depende das circunstâncias e do modo como nosso ânimo é afetado pelas coisas. “O sol é bom ou mau? Você precisa saber se compor com ele, para que não te destrua. Uma doença, por exemplo, também pode ter um aspecto pedagógico. Nietzsche fala: o que não me mata, me fortalece. Às vezes você fica mais consistente depois desse tranco da vida.”
Para Emílio, o importante é dar sentidos àquilo que nos acontece, ao invés de rotular algo como bom ou ruim – uma vez que esse rótulo já é fruto de um juízo. O que nos cabe, segundo o filósofo, é ativar a potência dos encontros e tirar proveito dessas experiências. “Quando moralizamos, não compreendemos. Bem e mal não existem como valores universais ou verdades absolutas. O que existe são bons e maus encontros. O que a gente sente quanto experimenta um bom encontro na vida? Saímos dele maiores do que quando entramos. Quando você sai com a sua percepção, a sua sensibilidade, o seu pensamento ampliado. Esse encontro pode ser comigo mesmo, com uma obra, um animal, uma pessoa, uma música. A nossa vida é inseparável dos encontros que a gente entretém.”
O que fez Spinoza ser perseguido, conforme destaca Emílio, foi essa revolução que ele propôs no modo de pensar a existência. Afinal, se um bom encontro aumenta a potência de existir e passamos a nos ligar pelos afetos de alegria, é muito mais difícil sermos controlados. “Para que um povo seja dominado, é preciso entristecê-lo. Um mau encontro diminui sua capacidade de sentir, de perceber, de pensar. Por isso, para Spinoza, o ser humano livre exerce a arte de selecionar os encontros. A gente sabe o que nos faz bem, mas por algum motivo às vezes acabamos escolhendo o que faz mal. Essa é a loucura: lutar pela nossa própria escravidão. Muitas vezes, desejamos aquilo que nos entristece.”
O filósofo acredita que um dos aspectos que nos aprisiona na escravidão são as ilusões. “Esse é um veneno que inoculamos em nós mesmos. Nossa primeira ilusão é a de finalidade: de que existimos a partir de uma finalidade que já está dada. É o grande delírio do ser humano”, diz Emílio. “Se você pensa, quando sai de um mau encontro, que aquela pessoa teve a intenção de lhe entristecer ou fazer mal, está atribuindo ao outro a responsabilidade pelo que sente. Filosoficamente, essa posição da existência se chama ressentimento. É a antítese da afirmação da vida. Acusando o outro por aquilo que sente, você está sendo indigno de suas experiências.”
Um mau encontro, conforme explica Emílio, é uma oportunidade de se superar. “Uma coisa é você anular aquela experiência que está vivendo acusando o outro, porque ele é mau e eu sou bom. A outra coisa é pensar: essa pessoa me desafiou. Por que fiquei tão abalado com o juízo dela sobre mim? Talvez ela possa me levar a fortalecer ou a compreender esse julgamento. Se eu entendo, isso já não me deixa tão vulnerável assim. Quantas pessoas passam a vida inteira orbitando em torno daquilo que acusam? Elas se impedem de fluir com o rio da imanência, como diria Spinoza. Esse é o problema do ressentimento: você não vê beleza em mais nada, simplesmente aponta o dedo e julga. Mas a quem estamos atribuindo a responsabilidade por aquilo que vivemos?”
São esses fatores, segundo Emílio, que nos impedem de perceber a vida como um palco de bons encontros. É por causa dessas ilusões que muitas pessoas acabam convertendo sua vida em uma espécie de sucessão de colisões com o outro. Mas a crença de Spinoza era, basicamente, de que não há nada melhor para um ser humano do que outro. Bastaria apenas abandonarmos a ideia de que precisamos nos proteger diante do outro, nos armar ou blindar contra as pessoas. “Ele é um pensador da possibilidade de renascer do encontro.”
O devir criança
Passando de Spinoza a Friedrich Nietzsche, dando um salto para a Alemanha do século XIX, mas ainda tratando da afirmação da vida, Emílio fala sobre a ideia de que o ser humano pode passar por três metamorfoses em sua jornada: o camelo, o leão e a criança. “A ‘dinamite’ que Nietzsche traz tem a ver com essa possibilidade de encontrar uma relação de amor à vida. Afirmar a vida, ultrapassar o que ele chamou de niilismo, ou seja, a necessidade de recorrer a outras vidas para dar sentido a esta. Ainda que haja outras vidas, o que importa é que só temos esta para viver aqui. E cada decisão nossa anula infinitas possibilidades daquilo que poderia ser.”
Em seu livro Assim Falou Zaratustra, Nietzsche apresenta o conceito de amor fati: “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”
Nesse aprendizado rumo a dizer “sim” à vida, o que seria o ser humano como camelo, para Nietzsche? “O camelo é um animal de carga, que carrega o fardo da existência, dos valores que estão em curso em certo tempo e espaço. A crença de que no futuro, ou em outro mundo, as coisas serão melhores. Uma terra prometida. Você se dependura em uma crença que já responde tudo e, a partir disso, não quer se elevar mais? Não quer mais pensar, ou se inquietar, ou se encantar com a vida? Nietzsche tinha horror à perda do encanto. Quando estamos no mundo dependurados em um fundamento, eis o camelo. Aquele que simplesmente carrega e passa a vida no registro da servidão”, aponta.
Emílio questiona ainda se as chamadas “verdades” do mundo estão a serviço da nossa expansão e alegria, ou simplesmente da nossa submissão e dominação. “O quanto isso é injetado em nós, para que nos tornemos cada vez mais subservientes em relação a uma ordem instituída? Em nome do reconhecimento do outro, muitas vezes abrimos mão de nossa própria vida.”
A proposta do ser humano livre diz respeito a se elevar, acima da censura e do elogio. Sair da posição de camelo, de resignação e dependência em relação a um modelo exterior. Aqui entra o “não” do leão. “Chega um ponto em que há um tremor de terra, em que a gente começa a desconfiar daquele altar que cultuamos, do chão onde crescemos, dos valores que nos garantiram certo conforto. Este é o momento em que a vida começa a ficar interessante! Isso pode ser um perigo também. Começamos a criar um terreno favorável para a invenção de novos valores em nossa vida. A gente se metamorfoseia. O que fazemos com isso é o ponto decisivo”, observa Emílio.
“Em um mundo no qual se fala tanto em sucesso, a gente não se autoriza esses estados que são extremamente frutíferos. Não queremos, de forma alguma, sentir a menor dorzinha. Sofremos um pouco e já queremos uma saída”, acrescenta o filósofo. “Para Nietzsche, uma dor pode ser um agente extremamente incendiador da potência de existir, para gerar ‘estrelas dançantes a partir do caos que atravessa’. Mas a sociedade fala que precisamos ser felizes. Você entra nas redes sociais e está todo mundo sempre nos píncaros da glória e das façanhas… A loucura é essa. A tirania da felicidade produz o avesso disso, que é justamente um povo melancólico, deprimido, porque acha que o que sente não tem direito de existir. Quando a sua dor não vem ao mundo, ela vira uma agonia violenta. E a dor chega até nós por todos os lados da vida. Ela sai apenas através da palavra, da expressão.”
Emílio acredita que a filosofia e a arte nos permitem uma capacidade de dar sentido para aquilo que acontece. “O ressentido é aquele que não consegue converter uma dor em um presente, não traz à superfície uma questão vivida. Ele sente e sente de novo, fica remoendo aquilo. Isso é o ressentimento. O ‘não’ do leão é quando começamos a criar uma situação que nos permite construir uma vida livre, segundo Nietzsche. Ao invés de lamentar quando você sofre, talvez possa pensar que esse sofrimento é uma potência de sentir a vida, de afetar e ser afetado por ela.”
Por fim, Emílio ressalta que alguns têm a chance de encontrar o “sim” da criança, concebido por Nietzsche como o esplendor da maturidade. “A criança não representa uma fase cronológica, vivida lá atrás, mas algo que devemos ativar em qualquer momento, que coexiste com qualquer fase. Esse estado afirmativo diante da vida não é simplesmente uma aceitação. É encarar a perspectiva de um eterno retorno e falar: assim eu vivi, assim eu quis e que venha de novo. Vocês já viram uma criança brincando? Ela está entregue à experiência do presente. Ela está inteira naquela relação, não fica imaginando como seria se estivesse em Paris… Esse é o estado de vínculo com a plenitude da presença, essa palpitação do instante.”
O filósofo sugere que essa relação de porosidade com a vida é o que podemos extrair de um encontro. “Ao invés de olhar o outro como um objeto, que vai atender a uma necessidade já estabelecida, podemos pensar nele como um mundo possível. Quantas relações de amor ficam completamente aprisionadas, porque projetamos sobre o outro o desejo de que ele atenda a uma representação, um papel definido? Talvez possamos olhar o outro como uma diferença, uma singularidade, como um universo que nunca conseguiremos desvendar totalmente.”
O objetivo, conforme conclui Emílio, é ultrapassar esse olhar pragmático e utilitário para “penetrar no terreno do inútil”, como a criança. Afinal, ela não reduz tudo ao critério de utilidade. “Precisamos celebrar esse aspecto inútil da vida, que ultrapassa o mero exercício da função. A necessidade do desempenho está nos impedindo de ter encontros reais com os outros. É a morte da criança. Imagine todo mundo tendo que ser um empreendedor de si mesmo, a partir dessa lógica de rivalidade e de concorrência… Ela nos priva da prática da amizade, que é o anti-interesse, o espaço da dádiva. A gente pode nascer do encontro. O bom encontro, que nos revincula ao presente, renova nossa relação com o passado e nos ajuda a inventar um outro futuro”, finaliza.