O irreverente festival de artes e música agita o Black Rock Desert, nos Estados Unidos, há mais de 30 anos
Foi no verão de 1986, em San Francisco Beach, na Califórnia, que um grupo de amigos organizou o primeiro Burning Man da história. A iniciativa de construir uma figura de madeira gigante e queimá-la na praia, para celebrar o solstício, foi de Larry Harvey e Jerry James. Assim que o “homem” foi incendiado, uma pequena multidão se formou ao redor dele. Nesse momento, surgiu também a primeira performance do evento: uma mulher se aproximou e segurou a mão da estátua, enquanto ela queimava.
A decisão de criar outro boneco, ainda maior que o primeiro, foi o que transformou aquele simples grupo de amigos e curiosos em uma comunidade. Com 4,5 metros de altura, o segundo burning man levou alguns finais de semana para ficar pronto. Na ocasião, o número de participantes do ato foi ainda maior – embora os organizadores ainda vissem o evento como um “grande piquenique”. Já em 1988, surgiu a vontade de atrair um público mais amplo, com posters e flyers, além de uma estrutura em forma humana de aproximadamente 12 metros – tamanho que se mantém até os dias de hoje.
Com o passar dos anos, os organizadores do Burning Man puderam contar com o apoio de artistas e voluntários para que o evento continuasse acontecendo e crescendo, ganhando popularidade a cada novo espetáculo. No entanto, a polícia de San Francisco baniu atividades com fogo na praia, fazendo com que a performance tivesse de ser transferida, em 1990, para seu atual local de realização, o Black Rock Desert. A própria sobrevivência do evento em um camping no meio do deserto foi um enorme desafio, mas a mudança fez com que todos os participantes passassem a se sentir como parte do festival – seja criando obras de arte e performances musicais, seja auxiliando na construção dessa comunidade temporária. Naquela época, já com milhares de integrantes, o festival era considerado uma experiência mística e espiritual, além de uma boa desculpa para fazer festa no meio do deserto. Aos poucos, o público passou de artistas hippies a empresários do Vale do Silício, modelos e até mesmo celebridades.
Em constante transformação
Mais de três décadas depois da primeira performance, em sua edição de 2019, o Burning Man acontece de 25 de agosto a 2 de setembro. O palco do festival ainda é o deserto de Black Rock, no estado norte-americano de Nevada. Nesse local inóspito e assolado por tempestades de areia, são os próprios participantes, reunidos em campos temáticos, que ajudam a criar a Black Rock City – uma espécie de metrópole com duração determinada, dedicada exclusivamente ao compartilhamento de ideias e de experiências artísticas, que conta com mais de 70 mil “habitantes” durante o evento.
O primeiro passo para participar do Burning Man – e também o mais difícil – é conseguir ingressos. Como eles esgotam rapidamente, é preciso ficar de olho nas vendas online. O segundo aspecto a considerar é a estadia. A estrutura comunitária dos acampamentos faz com que as “moradias” organizadas em Black Rock City sejam um dos diferenciais do evento. Os Burners (frequentadores do festival) chamam a cidade temporária de Playa, devido às areias quase transparentes e ao calor constante do local. Por isso mesmo, considerar a logística do deserto e planejar acomodações confortáveis (se possível, com ar-condicionado) é algo importantíssimo para quem pensa em frequentar o evento.
Entre as opções de hospedagem disponíveis, as mais comuns são: juntar-se a um acampamento temático já registrado, acampar nas áreas de camping aberto do Burning Man ou criar um acampamento registrado. Há também aqueles que preferem ir com seus próprios trailers, garantindo uma boa infraestrutura de “moradia”. Em geral, os acampamentos são separados de acordo com os interesses dos participantes, mas a principal característica é que todos contribuem de alguma forma. A ideia é estimular um processo de troca e de aprendizado, deixando para trás o “peso da sociedade”, em uma experiência que envolve desapego e coletividade. As tendas, barracas e caravanas, ao invés de estarem afastadas de onde o festival acontece, formam uma “cidade” e, assim, tornam-se elemento essencial dessa vivência. Por isso mesmo, todos os participantes são considerados “cidadãos” de Black Rock City.
Atualidade e coletividade
Atualmente, o projeto Burning Man busca expandir e aprofundar seu trabalho, com simpósios e conferências em áreas que vão além da arte e cultura, incluindo filosofia, política e meio ambiente. Representatividade, anti-consumismo e formas radicais de auto expressão também são temas apoiados pelos organizadores do festival. O evento possui ainda iniciativas de incentivo a tecnologias limpas criadas pela comunidade local. Muitos dos participantes frequentam Black Rock City há vários anos e levam seus filhos nessa verdadeira aventura pelo deserto, criando uma tradição que ultrapassa gerações. Uma das maiores provas de que o evento que se iniciou na contracultura já se tornou mainstream está no fato de que esculturas do festival foram recentemente exibidas no conceituado Smithsonian American Art Museum, em Washington.
As pessoas que escolhem fazer parte do Burning Man nunca são meras frequentadoras. Cada uma contribui ativamente na criação desse universo criativo e multicultural: realizando intervenções e performances artísticas ou interagindo com o trabalho de outros participantes. Aqueles que buscam inspiração e não possuem obras ou projetos para apresentar podem se voluntariar na construção e manutenção da infraestrutura da “cidade”, que conta com mapas e veículos próprios de comunicação. O senso de comunidade e de troca é algo que permeia toda a experiência, vista por muitos como um ritual verdadeiramente transformador – que busca não apenas entreter, mas esclarecer e educar os “cidadãos” de Black Rock. De acordo com um dos criadores do festival, “a única forma de não se divertir é não dar nada de si mesmo ao evento”.