Em meio ao terror da Segunda Guerra Mundial, a jovem Anne Frank colocou no papel seus medos e esperanças. O que podemos aprender com isso?
O ano era 1942. Na Holanda ocupada pelos nazistas, a jovem judia Annelies Marie Frank (Anne Frank) começou a documentar seu dia a dia em um diário, que ganhou de presente de aniversário. Mas o que imortalizou esse registro foi ele ter sido escrito por uma pessoa isolada em um esconderijo, dividindo com a folha em branco seus medos, ansiedades e esperanças, no auge da Segunda Guerra Mundial.
Nascida em Frankfurt, na Alemanha, Anne passou a maior parte de sua vida em uma localidade próxima a Amsterdã. Quando a ocupação alemã chegou à Holanda, temendo perseguições, a família da garota se escondeu em alguns cômodos atrás de uma estante de livros no prédio onde o pai de Anne (Otto Frank) trabalhava. Ali permaneceram por cerca de dois anos, em total isolamento, até serem presos pela Gestapo e encaminhados para campos de concentração, em 1944.
Embora Anne e sua irmã, Margot, tenham sido mortas em Auschwitz, poucos meses depois da data que conclui o diário, a história dessa jovem lutadora permanece como uma fonte de inspiração para todos nós, quase um século depois. Seu pai, Otto, foi quem se esforçou para publicar o diário, cuja primeira edição foi lançada em 1947. Hoje, o livro já foi traduzido para mais de 70 idiomas.
“Numa época assim fica tudo difícil: ideais, sonhos e esperanças crescem em nós, e depois são esmagados pela dura realidade” – Anne Frank
A força da palavra
Em tempos de quarentena, a comparação com figuras históricas que forçadamente experimentaram algum tipo de isolamento compulsório é inevitável – claro, guardando as devidas proporções.
Nelson Mandela, lendário líder político sul-africano e ativista anti-Apartheid, permaneceu na prisão por 27 anos. Anne Frank esteve isolada com sua família durante dois anos, com a ameaça iminente do nazismo pairando sobre suas cabeças.
Hoje, a ameaça que enfrentamos é muito diferente. A pandemia do Covid-19 nos levou ao isolamento social, levantando também uma onda de questionamentos, angústias e medos. É um inimigo invisível, ainda pouco conhecido, que vem acompanhado de incertezas. Mas o que temos de semelhante com essas personalidades tão inspiradoras é a capacidade de expressarmos nossos pensamentos e sentimentos.
Colocar ideias e opiniões no papel ou relatar o Quotidiano (como temos feito na Esquema), ou mesmo se expressar por meio de outras manifestações (como pintura ou música), são maneiras de lidar com o peso da incerteza que temos vivido diariamente. Os benefícios desse hábito têm efeitos semelhantes aos da terapia, permitindo sublimar as angústias e visualizar a situação sob novas perspectivas, dando uma compreensão mais profunda do todo.
Entre as vantagens de manter um diário, estão:
– Praticar a escrita. Seja uma página inteira ou apenas algumas linhas, escrever exercita o cérebro. É preciso pensar antes de colocar o lápis ou a caneta no papel (ou as mãos no teclado). Com certeza, o hábito ajuda a melhorar a forma como você se expressa por escrito.
– Praticar o desapego. Colocar para fora ideias, pensamentos e emoções (principalmente aqueles que nos causam aflição) é uma forma de deixá-los ir embora, uma espécie de terapia. Escrever ajuda a refletir, a compreender porque estamos nos sentindo de determinada maneira e também a lidar com esses sentimentos.
– Encontrar motivação. Em tempos como o que estamos vivendo, é importante valorizar cada progresso alcançado, cada passo dado. Escrever sobre os acontecimentos do dia a dia nos faz perceber essas pequenas conquistas, dando-nos uma sensação de “dever cumprido”. Afinal, cada objetivo realizado dá espaço para novas metas.
– Deixar um registro. Quando estivermos no futuro e olharmos para trás, poderemos ler o que escrevemos e lembrar daquilo que vivenciamos – as coisas boas e ruins, os obstáculos, as superações… e os aprendizados. E seremos gratos ao nosso “eu” do passado, por ter deixado esse registro de um pedacinho da nossa própria história.
Um pouco de história
A palavra diário vem do latim dies (dia) e basicamente se refere a anotações sobre o quotidiano e as opiniões de uma pessoa, organizadas por data. Essa prática se tornou comum no século XVIII e permanece até os dias de hoje (embora tenha migrado, em grande parte, para meios digitais, como blogs e vlogs).
Embora os antigos diários fossem escritos para registrar a vida privada de seus autores, alguns deles acabaram se tornando verdadeiros registros históricos, oferecendo um insight extremamente verdadeiro sobre como era o dia a dia das pessoas que os escreveram.
Um dos exemplos mais antigos de diário pertence ao imperador romano Marco Aurélio, que viveu no século II d.C. Na China, há registros de diários de viagem do século IX. Também eram comuns os diários de negócios, que registravam transações e estoques. Na era medieval, os diários eram usados por místicos para interpretar os eventos do quotidiano. Já no renascimento, passaram a ser usados para expressar opiniões e reflexões, sendo dessa época o primeiro registro da palavra “diário” (1605).
No século XVIII, com a redução nos preços do papel e o aumento das pessoas alfabetizadas, o hábito de escrever diários se popularizou. O primeiro a ser publicado como livro de memórias foi escrito por John Evelyn (1818). Posteriormente, alguns autores passaram a usar esse recurso como uma forma de contar histórias – por exemplo, O Morro dos Ventos Uivantes, (1847), de Emily Brontë, foi escrito em formato de diário.
Outros diários que se tornaram famosos foram os relatos de Samuel Pepys (escritos no século XVII, contando sobre eventos históricos importantes, como o grande incêndio e a grande praga de Londres), Charles Darwin (que registrava suas anotações de pesquisas científicas, nas explorações pelas Ilhas Galápagos que, posteriormente, deram origem à Teoria da Evolução), Marie Curie (química e física vencedora do prêmio Nobel, que mantinha um diário com suas pesquisas sobre materiais radioativos), Mark Twain (o renomado escritor anotava sua vida diária e observações sobre esses acontecimentos) e, naturalmente, Anne Frank.