Como o artista plástico e fotógrafo brasileiro foi capaz de transformar materiais inusitados – como terra, açúcar e lixo – em obras de arte reconhecidas internacionalmente
Foi um incidente ao mesmo tempo trágico e curioso que mudou os rumos da vida de Vik Muniz (nome artístico do paulistano Vicente José de Oliveira Muniz), artista plástico e fotógrafo hoje reconhecido internacionalmente. Em sua juventude, a caminho de um evento, ele tentou apartar uma briga na rua. Na confusão, foi baleado na perna. Por “sorte”, o atirador era uma pessoa rica, que deu a Muniz algum dinheiro para não ser processado. Foi com esses recursos que ele viajou, em 1983, para a cidade norte-americana de Chicago.
Atualmente, o artista mora e trabalha entre Nova York e o Rio de Janeiro. Embora tenha começado sua carreira nas artes plásticas como escultor, acabou voltando seu interesse para as representações fotográficas de seu trabalho, eventualmente focando as energias na fotografia. Suas obras são um sucesso comercial e de crítica, com exibições nos mais diversos países do mundo – incluindo Estados Unidos, Canadá, México, Austrália, França, Reino Unido, Espanha, China, Japão e Rússia.
Entre as exposições internacionais, destacam-se a individual Vik Muniz: Reflex, no University of South Florida Contemporary Art Museum, em Tampa, nos Estados Unidos, exibição essa que também passou pelo Seattle Art Museum e pelo PS1 Contemporary Art Museum em Nova York e pelo Musée d’Art Contemporain em Montreal, no Canadá. Além disso, seu trabalho foi destaque na The Hours – Visual Art of Contemporary Latin America, mostra apresentada no Museu de Arte Contemporânea de Sydney, na Austrália. As fotografias do artista fazem parte do acervo particular e de galerias de São Francisco, Madri, Paris, Moscou e Tóquio, além de museus como o Tate Modern e Victoria & Albert Museum, em Londres, o Getty Institute, em Los Angeles, o MAM, em São Paulo, e o Museu do Inhotim, em Brumadinho/MG.
Muniz incorpora objetos do cotidiano em seu processo fotográfico, para criar arrojadas (e muitas vezes enganadoras) imagens. O artista costuma trabalhar em séries, incorporando materiais pouco convencionais às suas criações – como terra, diamantes, restos de demolição, arames, algodão, açúcar, calda de chocolate, molho de tomate, gel para cabelo, recortes de revista, pigmentos e até mesmo objetos encontrados no lixo. Mais recentemente, tem criado obras em maior escala, como imagens esculpidas na terra (geoglifos), desenhos com fumaça de avião ou com enormes pilhas de materiais descartados.
Lixo extraordinário
Um aspecto marcante do trabalho de Vik Muniz são as experimentações para destacar a importância dos materiais. “Eu quero ser capaz de mudar a vida de um grupo de pessoas com o mesmo material que elas lidam todo dia”, afirmou o artista, no filme Lixo Extraordinário / Waste Land (2010). O longa-metragem, que acompanha o trabalho de Muniz junto aos catadores de materiais recicláveis em um dos maiores aterros da periferia do Rio de Janeiro, o Jardim Gramacho, foi indicado ao Oscar de melhor documentário em 2011, tendo sido também premiado nos festivais de Berlim e Sundance. Para o artista, a experiência de trabalhar com lixo, transformando objetos descartados em ideias, é a essência da arte. Sua proposta é ir atrás das imagens e descobri-las.
Acreditar em uma arte acessível, que não seja apenas para as elites, é outra das características do trabalho de Muniz. O artista busca se afastar das chamadas “belas artes”, ao invés disso lidando com matérias-primas do cotidiano e buscando incluir em suas obras pessoas que normalmente não teriam espaço nas manifestações artísticas convencionais; atraindo, com isso, os mais variados públicos. De certa forma, seu trabalho com os catadores de materiais recicláveis ajudou a mudar a vida dos “sujeitos” dessa arte: Vik Muniz doou os lucros da série Pictures in Garbage para os trabalhadores do coletivo de catadores. Além disso, ao receberem as obras das mãos do próprio artista, os retratados puderam se sentir vistos por uma sociedade que geralmente os inviabiliza.
Primeiros passos no mundo da arte
Filho de uma telefonista e de um garçom, Vik Muniz teve uma infância humilde. Nascido em 1961, em São Paulo, o garoto tinha dificuldades para se expressar de maneira escrita na escola. “Eu não virei artista. As pessoas, ao meu redor, deixaram de ser. Minha vó nunca foi à escola, mas aprendeu a ler sozinha. E foi ela quem me ensinou. Eu decorava as formas das palavras. Então, aos 7 anos, eu lia livros inteiros, mas não escrevia. Era um disléxico autodidata. Por conta dessa leitura por meio de formas, comecei a desenhar muito cedo. Se não conseguisse escrever a palavra, eu a ‘desenhava’”, contou, em entrevista ao Correio Braziliense. Aos 14 anos, um professor lhe indicou uma competição de artes, na qual ele ingressou e venceu, recebendo como prêmio uma bolsa parcial para um estúdio de arte. Sua primeira oportunidade de trabalho relacionada à criatividade foi aos 18 anos, redesenhando outdoors, publicitários.
Depois do incidente em que levou um tiro, que lhe rendeu a passagem até Chicago, em 1983, Muniz resolveu permanecer na cidade, trabalhando na limpeza do estacionamento de um mercado, enquanto frequentava uma escola noturna para aprender inglês. No ano seguinte, em uma viagem a Nova York, acabou visitando o Museu de Arte Moderna e conhecendo as pinturas de Jackson Pollock, que o inspiraram a se mudar para a “Big Apple”, apenas dois meses depois dessa primeira visita. Um amigo emprestou seu estúdio ao artista e foi ali que ele iniciou sua carreira como escultor. Aos 28 anos, conseguiu sua primeira mostra individual na cidade.
A partir de 1988, Muniz começou a desenvolver trabalhos que faziam uso da percepção e da representação de imagens, com diferentes técnicas e empregando os materiais mais diversos. Naquele mesmo ano, ele criou desenhos inspirados em fotos da revista americana Life; então, fotografou esses desenhos e pintou as imagens, dando a elas um ar de realidade. A série foi denominada The Best of Life. Entre as obras posteriores que obtiveram grande sucesso estão sua cópia da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, usando manteiga de amendoim e geleia, e o retrato de Sigmund Freud, com calda de chocolate. Outras obras clássicas, homenageadas por Muniz, são A Noite Estrelada, de Van Gogh, Les Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso, Moça com o Brinco de Pérola, de Johannes Vermeer, e A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt.
Imagens simples, de forma complexa
Inspirado por pintores como Man Ray e Max Ernst, e os pós-modernistas Cindy Sherman e Jeff Koons, além do cineasta Buster Keaton, Muniz usa referências da cultura pop e diz não acreditar em obras originais, mas em individualidade. O talento do artista plástico e fotógrafo está em executar imagens aparentemente simples de maneira complexa, ressignificando os temas abordados, para oferecer ao público novos pontos de vista.
As obras de Muniz geralmente são criadas em grande escala e depois destruídas, permanecendo apenas as fotos desses trabalhos. O artista afirmou que, no ato de fotografar, intuitivamente procura por imagens que correspondam às que ele visualiza em sua mente, antes de realizar o trabalho. Ele acredita que a fotografia é uma forma de libertar a pintura de sua responsabilidade de retratar o mundo como um fato.
Muniz diz não acreditar em arte política, afirmando que é preciso ajudar diretamente a quem precisa de ajuda. No entanto, as temáticas sociais e a preocupação com as pessoas simples acompanham seu trabalho há muitos anos. Para a série Sugar Children, o artista foi até uma plantação de açúcar na ilha caribenha de São Cristóvão e fotografou filhos de trabalhadores da terra, para criar desenhos sobre essas imagens, com diferentes grãos de açúcar. Outros destaques de sua obra incluem a exposição Do tamanho do mundo (2014), no sul do Brasil, que reuniu diversas imagens e revisitou os 25 anos de carreira do artista, e também os 37 mosaicos que decoram as paredes internas do metrô de Nova York, inaugurados em 2016.